segunda-feira, julho 21, 2008

Diante da Lei

Diante das decisões da justiça, nas últimas décadas, nada tão atual como Kafka...
Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda responde que, por enquanto, não pode autorizar a sua entrada.
O homem considera e pergunta depois, se poderá entrar mais tarde.
- "É possível" - diz o guarda. - "Mas não agora!". O guarda afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre. O homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver a cena, o guarda ri e diz: - "Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara: sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim".
O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o guarda envolvido no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar.
O guarda - tão bonzinho - traz uma banqueta e manda o homem sentar ao lado da porta.
Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar. Com suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos interrogatórios. - E a pátria, como vai? E a vida? Perguntas lançadas com indiferença, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar.
O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre: - "Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste".
Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros Aquele homem é o único obstáculo à entrada na Lei.
Nos primeiros anos resmuga sobre a sua sorte, em alto e bom som . Depois, ao envelhecer, limita-se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil. Por fim, de tanto examinar o guarda durante anos, já conhece até as pulgas das peles que ele veste. Pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda.
Com tempo começa a perder a visão. Acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda percebe, no meio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte está próxima.
Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz-lhe um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo. - "Que queres tu saber ainda?", pergunta o guarda. - "És insaciável".
- "Se todos aspiram a Lei", disse o homem. - "Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?". O guarda da porta, percebendo que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: - "Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora".
E fechou a porta.